ILEGALIDADE, SELVAJARIA E VANDALISMO NAS FAJÃS DE S.JORGE
HELIODORO TARCÍSIO
Recém-chegado de umas raríssimas e muito saudadas férias em Agosto, é precisamente um relato de férias que vos trago. Mas não é pelas melhores razões, infelizmente.
Passei este mês como gosto, a vaguear pelas nossas belas ilhas, no meu veleiro, na companhia de pessoas que amo. Não se pode pedir melhor, excetuando, talvez, um tempo mais benévolo mas, se calhar, não o merecemos. No fim das férias, o Popeye acabou por ficar preso em S. Maria, impedido de navegar pelo mau tempo. Coisas do mar açoriano…
A segunda semana de Agosto, passámo-la em S. Jorge, ilha onde nasci, por acaso numa fajã, a dos Vimes, perto da Calheta, em data que já não me apetece referir. Com a minha esposa e outro casal, gente minha desde há muito, amigos do coração, realizámos, por fim, um plano que já acalentávamos há alguns anos. Tratava-se de passar uma semana acampando numa remota fajã de S. Jorge, em total comunhão com a natureza, relaxando, descansando, praticando o saudoso campismo da minha infância, longe dos aglomerados barulhentos de tendas, das regras e regulamentos, dos frigoríficos portáteis, dos aparelhos de TV e de loiras escaldadas do Sol.. Praticantes de caça submarina, queríamos viver basicamente dos frutos do mar, nadar, apanhar muito sol, fazer umas caminhadas matinais e, á noite, fazer uma fogueira e ficar a conversar, a fazer um pouco de música, a beber chá e a olhar as estrelas. Tudo muito calmo e ecológico, só possível em lugares remotos mas seguros, como os que existem nos Açores. É nessas alturas que nos apercebemos do imenso privilégio que é ter nascido e viver nos Açores.
Como cidadãos pacatos e cumpridores das leis, mesmo quando discordamos delas, munimo-nos das imprescindíveis licenças de caça submarina e dispusemo-nos a cumprir a lei, pelo menos no que respeita à caça submarina , já que, creio ser atualmente ilegal ou, no mínimo, desencorajado, o chamado “campismo selvagem”, fora dos respetivos parques. Compreendemos as razões de tal postura, uma vez que conhecemos o comportamento selvagem e desregrado de muitas pessoas que conspurcam, destroem e poluem o ambiente à sua volta. Seja como for, a esse respeito, estávamos tranquilos, uma vez que somos campistas ecológicos, que não poluem o ambiente, nem deixam lixo ou quaisquer vestígios da sua passagem. Fossem todos como nós…
Chegados a S. Jorge, deixámos o meu amado barquito, o Popeye, em segurança na marina de Velas e, de carro alugado, fomos até à Fajã das Pontas, na freguesia do Norte Pequeno, onde havíamos decidido acampar.
Correu tudo como tínhamos planeado e melhor ainda. Foi uma semana infinitamente mais santa que a da Páscoa. Fizemos tudo o que queríamos, da maneira que sonháramos. Relativamente à caça submarina, encontrámos um mar cheio de peixe, como era na Terceira da minha infância. Caçávamos apenas de forma ecológica e totalmente legal, uma vez que só capturávamos o peixe que podíamos consumir naquele dia, dado que não possuíamos qualquer meio de conservação de pescado nem era essa a ideia. Mais uma vez, fossem todos como nós…
Só não foi totalmente perfeito porque aconteceu um incidente que nos incomodou, embora não demasiadamente. Já tínhamos ouvido uns rumores sobre o facto de serem considerados indesejáveis caçadores submarinos e pescadores “de fora” nas fajãs do Norte de S. Jorge mas não lhes demos ouvidos, por termos achado que isso eram coisas do antigo Far West, impensáveis entre nós. Mas , um belo dia, fomos até à fajã vizinha, da Penedia, para experimentar caçar noutras águas, sempre dentro dos mesmos moldes. Enquanto nos equipávamos, um bando de indivíduos, junto a uma casa, na encosta, gritava na nossa direcção e gesticulava, de forma obviamente hostil. Não lhes ligámos nenhuma, já que sabíamos estar plenamente dentro da lei. Além disso, nem eu nem o meu amigo nos amedrontamos com facilidade. Somos, sim, pessoas de diálogo franco e teríamos conversado de bom grado com quem quer que fosse que nos tivesse interpelado. Ameaças e gritaria passaram-nos completamente ao lado. Fizemos, então, um curto mergulho, em que mais uma vez, respeitámos completamente a lei, não capturando espécies proibidas nem exemplares juvenis, ficando mesmo muito àquem do limite legal de 6 presas diárias por caçador, uma vez que não precisávamos de 12 peixes. Fomos apenas apanhar peixe para o nosso jantar. O pior foi a desagradável surpresa que nos esperava quando saímos da água: o nosso carro tinha os quatros pneus em baixo; não estavam rasgados mas também não tinham sido simplesmente esvaziados; tinham-lhes retirado as peças completas das válvulas. Ou seja, tratava-se de um acto de vandalismo, acompanhado de roubo. Lá em cima, na encosta, o mesmo grupo de indivíduos olhava de esguelha, mas agora calados, como se não fosse nada com eles. Graças aos telemóveis, conseguimos resolver o problema, ligando para a pessoa que nos havia alugado a viatura. Resolveu-se mas ele teve de ir e vir duas vezes, da Penedia à Calheta, porque o único remédio foi trazer quatro pneus novos.
A partir deste incidente e em conversa com habitantes locais, descobrimos que, nas fajãs do Norte de S. Jorge, basicamente entre a da caldeira do Santo Cristo e a do Ouvidor, está em actividade uma espécie de milícia popular, formada por indivíduos que por lá têm casas ou terrenos. Esta gente hostiliza, ameaça e, como ficou provado, vandaliza e rouba os não residentes que apareçam por lá para fazer caça submarina, apanhar lapas ou pescar. Segundo relatos que ouvimos, são até usadas armas de caça para intimidar as pessoas, fazendo-se disparos, por enquanto para o ar.
Sendo um comportamento inaceitável e absolutamente ilegal, no entanto, a princípio, nós até tentámos compreender o ponto de vista deles. Inocentemente, julgávamos então, que se tratava de um raro caso de aguda consciência ecológica das nossas gentes, num esforço excessivo e irracional para preservar o ambiente único das fajãs. Não podíamos concordar nem aceitar aquelas atitudes mas, lá no fundo, tal consciência até colhia as nossas simpatias. Só que o pior ainda estava para vir. Em diálogo com habitantes locais e quando sugerimos o recurso ás autoridades perante quaisquer actos ilegais ou depredatórios, apercebemo-nos, com estupefacção, que aquele pessoal não quer lá autoridades nenhumas, muito menos a Polícia Marítima. A razão é muito simples, apresentada com ingenuidade até: eles querem fazer o que bem entenderem nas suas fajãs, capturar o peixe e o marisco que lhes apetecer, sem quaisquer restrições. Ou seja, a estarrecedora verdade, é que aquele pessoal quer as fajãs só para eles e se julga dono do mar também.
Este tipo de comportamento é inaceitável e totalmente ilegal. Os turistas, regionais, nacionais ou estrangeiros, também podem caçar e pescar no território nacional, desde que tirem as respetivas licenças e cumpram a legislação em vigor. As fajãs de S. Jorge e os seus fundos marinhos são património comum, que pertence a todos nós. Alguém pode imaginar ou aceitar que os terceirenses reservem as touradas à corda só para eles ? Ou os micaelenses quanto às Furnas ? Ou os faialenses quanto ao vulcão dos Capelinhos ? Todos os recursos, de todos os tipos, naturais ou culturais, pertencem a todos e todos podem deles usufruir, desde que cumpram as leis em vigor. Opiniões particulares têm um valor relativo. O mundo não é governado por opiniões particulares, havia de ser bonito se fosse assim. Em democracia, o mundo é governado por leis comuns, elaboradas pelos representantes do povo. Se as pessoas das fajãs de S. Jorge se sentem lesadas nos seus direitos ou se têm queixas a fazer, devem queixar-se e agir através das autoridades e dos representantes legítimos do povo. E, já agora, em primeiro lugar, devem ser eles a dar o exemplo e a respeitar a lei. Se o intuito é preservar as fajãs e proteger os seus recursos naturais, então o caminho correto é evidente: reivindicar leis próprias e estatutos específicos, fiscalização ativa, etc, junto das entidades locais, juntas de freguesia, câmaras municipais e deputados eleitos. Não me espanta nem choca, embora me entristeça porque ainda sou da época feliz da fartura e da abundância, que algumas fajãs de S. Jorge, sejam um dia transformadas em reservas naturais ou que atividades como a caça submarina e a pesca desportiva sejam muito limitadas e regulamentadas, à semelhança do que aconteceu com a caça no Continente. Fenómenos terríveis, como a poluição geral dos oceanos, a sobrepesca, sobretudo a comercial e as alterações climáticas, empurrar-nos-ão, inevitavelmente, para esse tipo de medidas drásticas.
Até lá, o que há a fazer é respeitar a lei e conviver pacificamente com os interesses e necessidades das outras pessoas. Até mesmo porque violência gera violência. Desta vez, o casou passou-se com gente de paz como nós mas na Terceira, por exemplo, o menos que falta é gente que também tem armas de caça, tacos de basebol e que não leva desaforo para casa. Afinal é uma terra de Bravos, mesmo que muitas vezes se trate de bravos malandros.
Às gentes das fajãs de S. Jorge, enquanto não existe algum dispositivo legal que regulamente especificamente o usufruto daqueles lugares maravilhosos, recomendo que, primeiro que tudo, respeitem eles próprios a lei e depois, que contribuam para a preservação das fajãs através de atitudes democráticas e pacíficas de informação e sensibilização dos visitantes. Denunciando também ás autoridades competentes quaisquer atividades suspeitas de ilegalidade. Através das juntas de freguesia, por exemplo, a quem compete zelar pelo património da freguesia, deve ser possível realizar coisas muito interessantes, através de estudantes em férias, como aconteceu neste Verão, ao nível da prevenção dos malefícios do excesso de exposição solar.
Entretanto, deixem-se lá dessas “cowboyadas” à americana, é ilegal e fica-vos muito mal. Além de que há sempre um cowboy mais alto, mais forte, mais rápido, mais inteligente e melhor equipado do que nós.
Este artigo é, assumidamente uma denúncia pública, que preferi a uma queixa formal. Fica aqui expressa, ao meu estilo, de forma aberta e desassombrada. Sei que o DI se lê em S. Jorge e pretendo que os implicados no caso o leiam e, sobretudo, que as autoridades, regionais e locais, tomem conhecimento destes problemas e façam alguma coisa para os prevenir. No entanto, seria imensamente injusto se não referisse que, em geral, as pessoas de S. Jorge são muito simpáticas e hospitaleiras. Na nossa estadia de uma semana, a esmagadora maioria das pessoas com quem lidámos foi muito amigável e só temos bem a dizer delas. Ficámos especialmente agradecidos ao Sr.Adelino e esposa, do mini-mercado do Norte Pequeno, ao responsável pela marina de Velas e a algumas pessoas com casa na Fajã das Pontas que foram tão gentis connosco. Escrito a 1 de Setembro, em Angra do Heroísmo. POPEYE9700@YAHOO.COM
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