A VITIMAÇÃO DA IGREJA DE ROMA
Heliodoro Tarcísio.
O artigo de opinião de Ramiro Carrola “Querem a Igreja Calada”, publicado no DI de 18 do corrente, encheu-me de azedume, que não cedeu aos anti-ácidos; evitei até agora comentar os artigos do senhor Carrola, por vários motivos; não me apetecer ser objecto da sua ferocidade; ele ser contra tanta coisa que até eu concordei aqui e ali com ele embora vaga e raramente e acreditar na liberdade de expressão, mesmo para veicular posições fascistas; desta vez não resisti, não sei porquê, talvez por saturação, uma vez que este artigo não passa do habitual choradinho deste senhor, de saudosismo pelo ambiente de Estado Novo, em que a Igreja Católica e o Estado davam as mãos para manter o povo subjugado, de espinha caída, trabalhando muito e rezando nas horas vagas, sem fazer ondas. Esse sim, era um mundo perfeitamente amorfo. Por outro lado, nos últimos tempos, outras pessoas, nomeadamente sacerdotes católicos, têm feito publicar na Imprensa local, artigos de opinião que vão no mesmo sentido, a vitimação da Igreja Católica. Irra, digo eu, já basta!
Esta gente clama que “querem calar a Igreja”, “confiná-la ao silêncio da sacristia” e “impedi-la objectivamente de erguer a voz”, entre outros crimes.
Ora, creio firmemente que nunca houve tanta liberdade de expressão religiosa como agora. A Igreja Católica tem basicamente ao seu dispor os meios que sempre teve, toda a capacidade, de matéria e de facto, do poderoso estado do Vaticano e continua presente no seio das sociedades ditas “católicas”, através do culto regular, das igrejas e demais estruturas físicas, das escolas e colégios de raiz católica, das universidades católicas, dos seminários, das mais diversas instituições de beneficência e apoio social, da catequese, do escutismo católico, dos “grupos de jovens” das paróquias, dos movimentos de leigos, das associações de “trabalhadores católicos” disto e daquilo, etc. Para além dessa presença sócio-cultural, que ainda é muito significativa, a Igreja tem à sua disposição todos os actuais e sofisticados meios de comunicação e informação, a imprensa escrita, a televisão, a rádio e claro, a Internet.
No entanto, apesar de toda essa influência, que ainda é substancial, é inegável que a Igreja Católica está em profunda crise por todo o lado, Portugal incluído; as igrejas desertificam, o culto dominical está ás moscas, entregue á 3.ª Idade, as procissões são cada vez mais um acto cultural e folclórico e menos uma manifestação de fé, a parte profana das festas populares é a que ganha cada vez maior destaque e os jovens, aos Domingos, preferem namorar, fazer surf e passear nas novas catedrais do sistema, os shoppings comerciais. Um Papa como João Paulo II, conservador e retrógrado mas com auréola de “bonzinho”, viajante e com uma história de vida romântica, que incluía resistência aos nazis e até uma namorada, ainda disfarçou a crise mas Bento XVI, um campeão da ortodoxia, um cardeal manipulador que, como qualquer político, preparou diligentemente na sombra a sua eleição, tem o perfil ideal para acabar de cavar a sepultura da Igreja Católica.
É com este estado de coisas que Ramiro Carrola e os seus correligionários não se conformam; vivem suspirando de saudade pelo tempo em que a Igreja Católica Apostólica Romana era a religião “oficial” do Estado, cooperando activamente com o poder político-militar no controle e dominação da sociedade, manipulando descaradamente a consciência social e a vida íntima e pessoal, por vezes através de processos grosseiros e abjectos. Convivem também muito mal com toda a “concorrência” que existe hoje em dia, com o sucesso relativo do protestantismo, com a multiplicação de novas igrejas evangélicas, com o interesse por outras religiões de matriz completamente diferente, como o budismo, por exemplo, com os movimentos de neo-paganismo, cada vez mais divulgados e com o próprio ateísmo, que tem de ser respeitado, enquanto abordagem filosófica da vida, tudo isto apesar do discurso oficial de ecumenismo. A este nível, a Igreja Católica tem o discurso intolerável de qualquer seita – ah, claro, todas as crenças têm o seu lugar e devem ser respeitadas mas nenhuma se pode comparar com a nossa, a “verdadeira fé”. Por acaso, este é também o discurso dos clérigos muçulmanos.
Na sua verborreia pungente e queixosa, no seu estertor moribundo, a Igreja Católica dispara fogo de metralhadora em todas as direcções; são os políticos que são muito maus e já não os deixam pendurar o crucifixo nas escolas, com excepção dos partidos da área de democracia cristã, evidentemente, é a sociedade em geral que se torna cada vez mais materialista e ateia, são os jovens que só querem sexo, drogas e rock, é o mundo da economia que só faz apelo aos valores do consumismo, são os media que informam, divertem e cultivam as pessoas mas não os fazem ajoelhar, etc.
Na verdade há muitos factores identificáveis no declínio cada vez mais acentuado da Igreja Católica mas, talvez pela minha formação em História, faço uma análise que reconhece e avalia todo um processo. Os seres humanos que, coitadinhos, vivem em média a miséria de 70 anos, têm tendência para compartimentar e ver as coisas de forma absoluta; para quem nasceu no séc. XX, parece que a Religião Cristã é algo que esteve sempre por aqui, tão antiga como o próprio planeta e que perdurará para todo o sempre, depois da nossa própria morte; na verdade, as coisas não são bem assim; a Religião Cristã tem apenas uns meros 2.000 anos, uma gotinha de água no oceano da História e uma partícula microscópica na vida do planeta Terra; nem sequer é a única grande religião, é apenas uma das grandes religiões da nossa civilização, a dominante no mundo dito “ocidental”, enquanto outras duas grandes religiões, muçulmana e o budismo, dominam outras áreas. No passado, num mundo dominado pela ignorância e pelo fanatismo, a religião católica tinha um peso esmagador na sociedade, que dominava, de forma extremamente limitadora, dura e repressiva, a maior parte das vezes em estreita aliança com o poder político. É precisamente o que acontece nos países muçulmanos, onde, apesar das bolsas de riqueza material e dos avanços tecnológicos, do ponto de vista das mentalidades e da organização social, ainda se vive em plena idade medieval. A chave para o controle do fanatismo muçulmano é precisamente o investimento na laicização das sociedades árabes, na absoluta separação entre Estado e Igreja, na instituição de um ensino plural, independente e aberto, sem as obscuras escolas islâmicas e na democratização da sociedade, com o fim da repressão das mulheres, por exemplo. Eu escrevi “investimento”, não escrevi invasão bélica, nem vou sequer referir-me ao fantoche Bush, títere dos lobbies políticos e financeiros que dominam o país dele, tudo isso me causa asco e me faz entender os árabes, embora condenando qualquer forma de violência.
Temos, portanto, na minha opinião, que a actual decadência da Igreja Católica é uma etapa de um processo dinâmico de civilização, provavelmente irreversível; no contexto de um mundo em constante e acelerada mudança, as explicações (refuto o conceito de “culpa”) devem encontrar-se no seio da própria Igreja Católica; teimosamente, o Vaticano mantém uma posição de antes “quebrar que torcer” relativamente a uma série de questões fundamentais; custa a acreditar que não haja pelo menos um cardeal inteligente que perceba que vai quebrar, não vai torcer; as posições da Igreja Católica em assuntos como o celibato dos padres, a ordenação feminina, a contracepção, o aborto, o divórcio, o sexo fora do casamento, o homossexualismo, para referir apenas os mais importantes, estão a conduzi-la rápida e inexoravelmente ao desencontro total com a sociedade em constante mutação, nomeadamente em relação aos jovens.
Pessoalmente, não escondo que não aprecio a Religião Católica, que distingo perfeitamente do Cristianismo. Pouco há de comum entre o movimento do Nazareno de há 2000 anos e a Igreja de Roma. Porém, como já escrevi muito, deixo essa explicação para outra oportunidade. Antecipando já adjectivações virulentas, dispenso quaisquer rótulos, sou apenas um livre-pensador, sem tabus nem filiações políticas. Desconfio sempre de todas as formas de unanimidade, dogmatismo e massificação. Mas confesso que gosto de rock e de futebol, afinal ninguém é perfeito. Quanto ao senhor Carrola, que estrebuche à vontade mas o reino dele já não é deste mundo.
quinta-feira, 14 de outubro de 2010
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